O número de estupros cometidos contra pessoa vulnerável em Piracicaba (SP) é mais que o dobro dos demais registros de estupro, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Na prática, significa que crianças e outras pessoas sem condição de consentir com o ato sexual são a maioria das vítimas nesse tipo de crime.
Segundo o Código Penal, é considerado vulnerável neste crime qualquer pessoa menor de 14 anos, pessoa que tem alguma enfermidade ou deficiência mental e que não tem discernimento para a prática do ato ou qualquer outra pessoa que não pode oferecer resistência por outra causa.
Em Piracicaba , até novembro de 2022, foram 16 registros de estupro de vulnerável e oito de estupro. Em 2021 os números dos dois tipos de ocorrência ficou igual, com 14 cada. Já nos três anos anteriores, a quantidade de estupros de vulnerável foi mais que o dobro dos demais casos. Veja no gráfico:
Segundo a delegada adjunta da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Piracicaba e mestre em direito, Olívia dos Santos Fonseca, há um critério objetivo para diferenciar os dois tipos de crime. A lei entende que qualquer pessoa de 14 anos ou menos não tem capacidade de consentir, então nesses casos é sempre considerado estupro.
“E também tem o critério subjetivo, que são as pessoas capazes de consentir com o ato ou responder uma agressão sexual, mas por uma razão de efeito externo, como o álcool, é incapaz de consentir ou validar o consentimento de uma maneira plena e lúcida”, explicou.
Nos últimos cinco anos, 67% dos crimes sexuais registrados em Piracicaba foram nessas situações. Veja no gráfico.
De acordo com Olívia, a diferença nos números é preocupante e várias situações acabam colocando crianças e adolescentes predispostas a serem vítima desse tipo de violência. “Mais da metade dos casos são praticados por alguém próximo da família, um pai, um irmão, um padrasto, um tio, alguém que frequenta a família”, afirmou.
“Essas pessoas que praticam esse tipo de crime aproveitam dessa proximidade que têm, de morar próximo, de ser parente… Aproveitam do fato da criança e do adolescente ser mais fácil de coagir, de chantagear, de ameaçar, e praticam o ato.”
A delegada também afirmou que muitas vezes crianças, principalmente as mais novas, não entendem que aquele ato é um abuso, não sabem o que está acontecendo, e isso também gera oportunidade para que o abusador cometa o crime.
A dificuldade de denunciar também é um desafio: “Se já é difícil para uma mulher adulta relatar um estupro, porque muitas vezes a mulher se culpa porque a sociedade faz ela entender que é culpada, imagina uma denúncia partindo de uma criança ou adolescente.”
Nem sempre é pedofilia
Olívia afirma que nem sempre os abusos cometidos contra pessoas vulneráveis partem de um pedófilo. A pedofilia não é crime segundo o Código Penal brasileiro. Ela é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que faz com que a pessoa sinta desejo sexual por crianças.
“Nem todo pedófilo é criminoso. E nem todo criminoso é pedófilo. A pedofilia acontece, segundo a Sociedade Americana de Psiquiatria, em 3% a 5% dos casos”, ressaltou.
A delegada afirma que existem pessoas que descobrem o distúrbio, passam a vida tratando e jamais investem contra alguém vulnerável.
“O que eu vejo na maioria dos casos que são bandidos que se aproveitam da facilidade, da vulnerabilidade, para praticar esses atos contra essas crianças ou adolescentes. Simplesmente bandidos. Se a gente pensar que é todo mundo doente, a gente está atenuando o ato, inclusive um atenuante do Código Penal”, acrescentou.
Geralmente, segundo Olívia, os criminosos escolhem as vítimas pela facilidade de manipular. “Porque aí começa a ameaçar. ‘Se você contar para a mamãe, a mamãe vai ficar brava, vai bater em você’ ou ‘Eu vou matar sua mãe’. Em alguns casos a mãe é até conivente”, exemplificou.
Educação sexual é a solução
A delegada adjunta da DDM de Piracicaba afirma que um dos desafios de combater a violência sexual contra crianças e adolescentes é defasagem da educação sexual e a alta exposição de conteúdos inapropriados na internet.
“A internet expõe muito crianças e adolescentes a conteúdos que ainda não são apropriados para a idade. E o lugar onde a gente tem que falar disso, a gente poda. A escola, a sociedade, a família, o lugar onde a criança e o adolescente deve se informar, tomar consciência sobre seu corpo…”, argumentou.
Ainda conforme Olívia, educação sexual vai além de saber os órgãos reprodutivos. Inclui, segundo ela, as consequências de uma relação sexual sem proteção, mostrar para a criança e adolescente as partes do corpo que podem e que não podem ser tocadas por outras pessoas.
“‘Se fala ‘é muito cedo para falar disso’, mas eles estão tendo acesso. Eles estão tendo acesso a conteúdo impróprio o tempo todo. A conscientização tem que partir da família, da escola.”
Segundo a delegada, para proteger as crianças é necessário acompanhá-las, observar mudanças de comportamento, de humor, reclamações e levar o que elas dizem a sério. “Ensinar a criança o que pode e o que não pode, quem pode e quem não pode. Conscientizar.”
“São pequenas ações que lá na frente podem impedir, podem fazer com que a criança se sinta segura para contar se aconteceu alguma coisa, saiba o que está falando, tenha confiança. Informação é poder”, acrescentou.
A delegada da DDM finaliza ressaltando que, embora crianças e adolescentes sejam mais vulneráveis a esse tipo de crime, mulheres adultas também são vítimas frequentemente.
“Ser mulher é estar propícia a esse tipo de assédio. A preocupação do homem é a violência urbana, sofrer um assalto, uma tentativa de homicídio. O maior medo da mulher é sofrer uma violência sexual, a gente cresce com isso na cabeça. A gente cresce com os adultos falando ‘senta direito, arruma a roupa’, quando o problema não é o que a gente usa, o que a gente faz. O problema é como as pessoas veem a gente”, finalizou.