Quem viaja pelas estradas de São Paulo rumo ao litoral quase sempre tem um destino certo: Ubatuba é a cidade preferida de sete entre dez turistas. Nesse paraíso é fácil e divertido pescar, avistar as mais belas aves, interagir com a natureza de uma forma respeitosa e inesquecível e até conhecer um pouco da nossa história, já que o lugar foi cenário de muitas passagens históricas durante o século XVI.
Uma ilha em especial chama a atenção dos turistas: é preciso navegar cerca de 15 minutos para chegar ao Parque Estadual da Ilha Anchieta, criado em março de 1977. Um recanto preservado, de Mata Atlântica exuberante e incalculável valor como reserva biológica. Ali ninguém pode acampar, pescar, retirar do mar ou dos costões qualquer espécie de flora ou fauna marinha, colher mudas, cortar plantas, levar animais domésticos e abrir caminho pela mata
A ilha foi habitada por índios Tupinambás até o início do Século XIX. Já teve vários nomes, como Terra de Cunhambebe. Para os colonizadores portugueses era a Ilha dos Porcos, até que em 1934 foi rebatizada como o nome atual em homenagem aos 400 anos do nascimento do Padre José de Anchieta que, ao lado do também missionário jesuíta Manoel da Nóbrega, entre 1550 e 1600, se aproximou das tribos e conquistou a confiança dos índios.
Durante séculos a ilha serviu para diversas atividades. Imigrantes de vários países europeus contribuíram para escrever parte da trágica história desse pedaço de terra, que de calmo nunca teve nada. Entre 1902 e 1908 o governo construiu uma colônia correcional. Os mais perigosos bandidos, os mais cruéis marginais eram enviados para a ilha, onde o isolamento era quase que total. Em 1928, a colônia serviu de presídio político.
Quem começou a mudar a história foi o preso Álvaro da Conceição Carvalho Farto, conhecido como Portuga. Ele chegou e mudou o comportamento dos presos. Chamou os líderes e ordenou que daquele dia em diante o comportamento deles deveria ser exemplar. Não poderia haver mais brigas, quebradeiras e discussões. Quem desrespeitasse pagaria com a vida. O objetivo dos detentos era conquistar a confiança da população que vivia na ilha, em sua maioria filhos e esposas dos militares que vigiavam tudo. A estratégia deu tão certo que teve policial convidando preso para festa de aniversário. Alguns pediam para o preso segurar o fuzil para amarrar o cadarço da bota. Todos pareciam amigos em uma colônia de férias.
A pacificação era, na verdade, parte de um plano de Portuga, de longo prazo, para uma fuga em massa. O plano seguiu como combinado até que em junho de 1952 a rebelião estourou logo após a morte de um soldado. Eles mataram um militar, tomaram a arma dele, foram para o alojamento e mataram mais alguns. Daí, tomar o presídio com tantas armas e de surpresa foi fácil.
O único erro dos fugitivos foi na hora de pegar o barco para retornar ao continente. A viagem da embarcação que levava mantimentos para a ilha, e que seria usada na fuga, atrasou e quando o barco chegava perto da praia um dos presos, que estava bêbado, atirou com a metralhadora pensando ser reforço da polícia. Imediatamente o capitão fez meia volta e retornou com medo. Nesse mesmo momento um soldado que conseguiu fugir do massacre foi nadando por quilômetros até o continente e conseguiu dar o alerta.
A rebelião ajudou o fechamento do presídio, que foi definitivamente desativado em 1955. Hoje, uma pequena homenagem anual lembra os oito mortos em combate naquele fatídico dia.
Do presídio sobrou pouca coisa. Ruínas, celas enferrujadas, cheias de mato. Lembrança de um tempo distante que hoje parece filme. Talvez por isso a Ilha Anchieta seja um museu a céu aberto para quem adora fazer uma viagem na história e desfrutar das belezas naturais. As muitas trilhas proporcionam um contato único com a Mata Atlântica. As praias paradisíacas são um convite ao banho, ou o visitante pode simplesmente sentar em um mirante e contemplar a vista do mar aberto.
Com a caça e a pesca proibidas, a Ilha Anchieta se tornou um dos melhores pontos de mergulho do Brasil. A riqueza da fauna e da flora e a transparência da água permitem uma viagem inesquecível pelo mundo submarino. A temperatura da água varia entre 20ºC e 28ºC e a profundidade entre 3 e 15 metros. O fundo do Atlântico nesse paraíso é de costões rochosos e areia, onde vivem tartarugas, centenas de corais-cérebro, esponjas, algas, budiões, arraias-prego, garoupas, badejos e peixes coloridos, principalmente na ponta sul da ilha.
Anchieta enfrentou por muitos anos diversas formas de exploração humana, o que praticamente destruiu a fauna e a flora originais. A maioria dos animais que hoje vivem por lá foi introduzida em 1983 pelo Zoológico de São Paulo. Hoje há uma superpopulação de capivaras, quatis, gambás, tatus e lagartos, além de macacos-prego, os principais predadores das mais de 72 espécies de aves como sabiás, juritis e a mais bela de todas e símbolo de Ubatuba, o tangará-dançarino.
Um paraíso que há milhares de anos resiste à ação predatória do homem. Um lugar imperdível para quem ainda não o conhece. Inesquecível para quem já é visitante deste paraíso. Uma ilha onde hoje não há mais prisioneiros, de nenhuma espécie. Onde a liberdade é palavra que vale para todos. É só chegar, respeitar e aproveitar. O convite está feito.
ONDE FICA
A segunda maior ilha do litoral de São Paulo, com 828 hectares, pertence ao município de Ubatuba. Desde 1977 é Parque Estadual, administrado pelo Instituto Florestal, órgão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente.